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Perdas de Água e Favelas: o que os dados revelam (e escondem)

  • Foto do escritor: Cassiano Simões
    Cassiano Simões
  • 10 de jul.
  • 28 min de leitura
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DESTAQUES

  • O Brasil possui mais de 16,3 milhões de habitantes vivendo em favelas, o equivalente a 8,1% da população nacional, segundo o Censo Demográfico 2022 (IBGE). A presença dessas populações é particularmente concentrada em capitais e regiões metropolitanas do Sudeste, Norte e Nordeste.

  • Dos 656 municípios com favelas mapeadas, 52% da população total em favelas se concentra em apenas quatro estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Amazonas. O estado de São Paulo lidera com 3,63 milhões de pessoas vivendo em favelas.

  • O estudo mostra que, mesmo com grandes populações em favelas, muitos municípios declaram 100% de atendimento de água, mas apresentam baixa hidrometração, levantando dúvidas sobre como o consumo é medido e contabilizado. E o inverso, com municípios com percentual de população em favelas quase que subtraídos ao índice de atendimento e apresentam 100% de hidrometração.

  • Nas capitais com maior proporção de população vivendo em favelas, como Belém (57,2%) e Manaus (55,8%), os níveis de perdas totais de água são elevados: 61,9% e 47,5%, respectivamente.

  • A cidade de Maceió (AL) lidera entre as capitais no índice de perdas, com 71,7% da água produzida não contabilizada, mesmo com 83,2% de hidrometração e 15,8% da população em favelas.

  • Entre as capitais mais populosas, São Paulo apresenta a menor perda de água (25,3%), mesmo com 15,1% da população em favelas e 100% de hidrometração. Já o Rio de Janeiro, com 21,7% da população em favelas, registra 50,5% de perdas e apenas 67,3% de hidrometração.

  • A análise estatística com dados do SINISA e Censo 2022 revelou correlações moderadas entre a proporção de população em favelas e perdas totais de água nas capitais e metrópoles (ρ = +0,42), além de vínculos entre hidrometração, cobertura e capacidade econômica municipal.

  • Os resultados indicam que a invisibilidade técnica e estatística das favelas pode distorcer os indicadores oficiais de eficiência e universalização, reforçando a necessidade de revisão crítica dos critérios regulatórios e dos instrumentos de planejamento.


INTRODUÇÃO


A gestão eficiente dos sistemas de abastecimento de água no Brasil enfrenta uma série de obstáculos técnicos, operacionais e sociais. Entre eles, a urbanização informal — expressa oficialmente pela ocorrência de favelas — representa um dos mais persistentes desafios estruturais das cidades. A precariedade da ocupação territorial, a ausência de regularização fundiária e as limitações no alcance dos serviços públicos formam um conjunto de barreiras que afetam diretamente o funcionamento dos sistemas de saneamento e a contabilização adequada da água produzida, distribuída e efetivamente consumida.

Apesar da ampla produção de estudos sobre perdas de água e sobre a urbanização precária em separado, a relação direta e objetiva entre esses dois fenômenos ainda é incipientemente explorada com base em dados sistematizados e espacializados. Este estudo se propõe a preencher parte dessa lacuna ao analisar, de forma inovadora e sistemática no Brasil, a correlação entre a proporção populacional vivendo em favelas e os indicadores de perdas nos sistemas de abastecimento de água — além de outros indicadores operacionais e econômicos relevantes para aprofundar a avaliação. A análise parte do cruzamento entre as informações populacionais do Censo Demográfico 2022 (IBGE), com foco nos municípios que apresentaram oficialmente alguma população residente em favelas, e os dados operacionais extraídos do novo Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (SINISA), referente ao ano de 2023.

O objetivo central da análise é identificar padrões territoriais e estatísticos que permitam compreender se há, de fato, uma relação consistente entre a presença de favelas nos municípios e o aumento nas perdas de água. Para isso, também são considerados outros indicadores associados à eficiência e à capacidade institucional dos serviços, como o índice de hidrometração, o consumo médio residencial per capita e a receita operacional média por usuário.

A metodologia adotada combina visualização espacial — com o uso de mapas coropléticos e mapas de calor ponderados pela população total — e análises estatísticas baseadas em matrizes de correlação para diferentes recortes dos municípios que apresentam dados de favelas: total de municípios, apenas capitais, capitais e metrópoles, agrupamentos por região do Brasil e nível de favelização dos municípios. Os resultados são organizados em painéis interativos desenvolvidos em dashboard, permitindo ao leitor navegar pelos dados conforme filtros e categorias específicas.

Ao longo deste artigo, será apresentada uma contextualização técnica e crítica sobre a dinâmica das favelas brasileiras, as formas como o abastecimento de água se dá nesses territórios e os desafios de mensuração das perdas — especialmente aquelas de natureza comercial. Em seguida, são apresentados os dados, os mapas e os dashboards interativos, acompanhados de uma leitura interpretativa dos principais resultados. Por fim, discute-se as implicações estruturais e práticas dessas relações para a formulação de políticas públicas de saneamento e regularização urbana no país, com foco na superação das desigualdades e ineficiências que atravessam historicamente os espaços urbanos marginalizados.


O TERRITÓRIO DAS FAVELAS NO BRASIL


Construção social, jurídica e geográfica da vulnerabilidade

A favela, enquanto expressão territorial da desigualdade, constitui-se como o espaço onde as contradições urbanas e institucionais se materializam de forma mais aguda. No Brasil, a presença das favelas é o resultado direto da ausência histórica de políticas habitacionais estruturantes, da precariedade no acesso à terra urbana formal e da fragmentação dos instrumentos de planejamento e regulação fundiária. O que se convencionou chamar de “vulnerabilidade” nesse contexto não é apenas consequência da pobreza ou da informalidade, mas a manifestação concreta de uma negação sistemática de direitos — produzida tanto pela omissão estatal quanto pela ação seletiva das políticas públicas.

As favelas não são fenômenos pontuais ou transitórios. Elas se consolidaram como parte integrante do tecido urbano brasileiro, atravessando diferentes regiões, portes de municípios e contextos de governança. São territórios que não apenas abrigam populações excluídas da cidade formal, mas que também funcionam como unidades econômicas independentes e com seus próprios mecanismos de acessar ou prestar serviços dos mais variados tipos, desde os essenciais quanto os não essenciais.

De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2010, o Brasil contava com 11,4 milhões de habitantes vivendo em áreas classificadas como aglomerados subnormais, o equivalente a cerca de 6% da população brasileira à época (190 milhões). Em 2022, com a adoção oficial do termo favela, o IBGE contabilizou 16,4 milhões pessoas vivendo nesses territórios, e o país com população total de 203 milhões. Isso representa um crescimento de 8% da população total entre 2010 e 2022, mas um crescimento de 44% da população residente em favelas no mesmo período. Ainda que os dados não permitam inferir se esse aumento se deve majoritariamente ao crescimento natural da população moradora ou à chegada de novos habitantes que não residiam em favelas, a discrepância entre os percentuais evidencia que a informalidade urbana cresce em ritmo significativamente mais acelerado que a cidade formal.

Onde estão as favelas brasileiras

A partir dos dados do Censo Demográfico de 2022, foi possível atualizar e refinar a compreensão sobre a distribuição das favelas no território nacional. Segundo o IBGE, foram identificados 657 municípios brasileiros com presença de favelas, o que corresponde a pouco menos de 12% dos municípios do país. Todos esses municípios concentram uma população de 123,8 milhões de habitantes, correspondente a 58,8% da população brasileira.

A distribuição das favelas no território brasileiro revela uma clara tendência de concentração nos grandes centros metropolitanos — especialmente nas capitais das regiões Sudeste, Nordeste e Norte — onde a urbanização acelerada, a especulação imobiliária e a exclusão territorial criam as condições para o surgimento e a persistência dessas ocupações. Embora Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pará e Amazonas se destaquem pelo volume absoluto de favelas e população residente nesses territórios, o fenômeno também se manifesta em cidades médias e em polos de crescimento do interior, impondo novas exigências ao planejamento territorial, à regulação fundiária e à universalização dos serviços públicos em diferentes escalas urbanas.

Em termos absolutos, a região Sudeste concentra o maior número de municípios com favelas registradas — 253 no total — enquanto o Centro-Oeste apresenta o menor número, com 38 municípios. O Estado de São Paulo lidera com folga em contingente populacional residente em favelas, com 3,63 milhões de habitantes, o que representa 22,1% do total nacional. Em contraste, o Mato Grosso do Sul possui apenas 16,7 mil moradores de favelas, correspondendo a 0,10% da população favelada do país. Quando somados, os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Amazonas concentram 52% da população total em favelas do Brasil, totalizando 8,5 milhões de pessoas. Esses dados evidenciam que, embora o fenômeno da informalidade seja nacional, este se manifesta com intensidade e complexidade muito distintas entre as unidades federativas, exigindo abordagens políticas e operacionais diferenciadas para o enfrentamento da precariedade urbana.

Mapa da densidade populacional em favelas no Brasil

Fonte: IBGE Censo 2022
Fonte: IBGE Censo 2022

A análise por faixas de favelização permite uma leitura mais estruturada da magnitude do fenômeno em relação ao total da população de cada município. Municípios com baixa favelização (0 a 5% da população) representam 52,29% da amostra analisada, com 343 municípios que somam 888 mil habitantes em favelas, ou seja, apenas 5,42% do total populacional favelado. Na faixa média (5 a 15%), estão 188 municípios (28,66%), com um total de 3,17 milhões de pessoas (19,32%). Já os municípios com alta favelização (acima de 15%) concentram 12,37 milhões de habitantes, distribuídos em 125 municípios (19,05%), o que representa impressionantes 75,26% da população total residente em favelas no país. Esse recorte revela que, embora a maioria dos municípios tenha proporções relativamente pequenas de população em favelas, a maior parte da população efetivamente favelada se encontra em contextos de altíssima concentração, o que tende a amplificar os desafios de gestão urbana, controle de perdas e prestação de serviços públicos.

Gráfico de faixas de favelização dos municípios do Brasil

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Dentro dos próprios municípios, a localização das favelas também segue um padrão de vulnerabilização ambiental. Muitas dessas ocupações se instalam em áreas de risco geológico, encostas de morros e margens de rios e córregos — frequentemente classificadas como Áreas de Preservação Permanente (APPs). A combinação entre precariedade construtiva e fragilidade ambiental amplia o risco de desastres e dificulta a atuação preventiva do poder público, além de elevar os custos e a complexidade técnica para implementação de infraestrutura adequada.

Entre o termo técnico e a realidade urbana

A substituição do termo “aglomerado subnormal” por “favela” a partir do Censo de 2022 marca não apenas uma alteração terminológica do IBGE, mas um posicionamento político e conceitual sobre a forma como o Estado reconhece e comunica os territórios da informalidade. O antigo termo, embora funcional para fins técnicos, era amplamente criticado por se afastar da realidade empírica e da autodefinição das comunidades.

Com a adoção oficial de “favela”, o IBGE adere a uma denominação já enraizada no imaginário urbano e nos movimentos sociais de luta por moradia. A mudança visa ampliar a inteligibilidade dos dados para a população em geral e reforçar a legitimidade dos estudos e políticas públicas que tratam desses territórios. Mais do que um ajuste linguístico, essa decisão contribui para romper com uma visão que colocava as favelas como espaços de exceção, reafirmando seu papel como parte constitutiva da dinâmica urbana brasileira.

Ao legitimar o uso do termo “favela”, reconhece-se também a centralidade desses territórios na produção da cidade real — aquela que se constrói à margem das normas, mas dentro das necessidades de moradia, trabalho e acesso aos serviços públicos, ainda que por vias precárias ou improvisadas.

Regularização fundiária, direitos e acesso à água

Um dos principais entraves à universalização dos serviços públicos nas favelas é a ausência de regularização fundiária, que restringe ou inviabiliza a atuação legal das concessionárias e operadoras. Na prática, milhões de domicílios permanecem fora dos contratos formais de abastecimento de água, esgotamento sanitário e energia elétrica. A prestação dos serviços, quando ocorre, se dá muitas vezes por meio de redes improvisadas, arranjos coletivos, ou intervenções toleradas, mas fora dos padrões normativos e sem garantias de continuidade e qualidade.

Do ponto de vista jurídico e institucional, essa condição produz um limbo: de um lado, os prestadores não têm segurança legal para atuar nesses territórios; de outro, sua omissão compromete o cumprimento de metas legais e infringe direitos fundamentais. Esse impasse gera impactos negativos para todos os atores envolvidos:

  • Para os moradores, a prestação improvisada compromete a qualidade, a regularidade e a segurança dos serviços, para si e para outros, e podem produzir consumos excessivos pela ausência ou submedição dos volumes consumidos, produzindo maiores perdas;

  • Para os prestadores, a ausência de controle territorial impede o monitoramento do consumo, dificulta a operação dos ativos e compromete o planejamento hidráulico;

  • Para os usuários regulares, há repasse indireto de custos produzidos pelas perdas de água, tanto físicas quantos comerciais.

Contudo, um agravante da situação, é de que a instalação de infraestrutura básica, embora represente um avanço em termos de garantia de direitos, pode acabar sendo interpretada como um ato de legitimação da ocupação, criando um impasse político e jurídico para gestores e reguladores. Após décadas de políticas que evitaram estruturar as favelas com o argumento de desincentivar a ocupação, o que se observa é o oposto: a precariedade dos serviços impõe mais dificuldades à gestão urbana e aumenta o custo social da permanência dessas populações em áreas de risco e exclusão.

Outro efeito colateral relevante é a subnotificação das favelas nos indicadores oficiais. Em muitos casos, os domicílios nesses territórios podem ser parcialmente ignorados nos cálculos de cobertura dos serviços de água, esgoto, energia, transporte e saúde, o que compromete os diagnósticos e as metas de universalização. As bases de dados institucionais podem muitas vezes considerarem apenas os domicílios regularizados, o que gera um vácuo estatístico que contribui para a invisibilização das necessidades reais de infraestrutura e serviços em geral.

No caso específico da água, essa ausência de regularidade formal compromete diretamente a mensuração e contabilização do consumo, impactando os índices de perdas comerciais e operacionais reportados pelos prestadores. A baixa cobertura de hidrômetros e a precariedade das redes internas podem gerar volumes significativos de água consumida que não são faturados nem medidos — compondo os chamados volumes não contabilizados, que pressionam os balanços hídricos e obscurecem a eficiência real dos sistemas.


PERDAS DE ÁGUA E URBANIZAÇÃO INFORMAL


Invisibilidade do consumo, informalidade e a complexidade da medição

A ideia de que toda favela opera inteiramente à margem do sistema formal de abastecimento é, por um lado, imprecisa e, por outro, perigosa do ponto de vista da formulação de políticas públicas. A realidade é muito mais diversa e depende de fatores como localização, grau de consolidação da ocupação, atuação das concessionárias, arranjos comunitários e políticas locais. Em muitos casos, há formas de acesso parcialmente regularizadas, com ligações coletivas, sistemas internos organizados pela própria comunidade e até cobrança compartilhada de contas — ainda que fora dos padrões legais.

Os dados do Censo 2022 do IBGE mostram que, no Brasil, 86,4% dos domicílios localizados em favelas utilizam a rede geral de distribuição como fonte principal de água. No total, são 4,8 milhões de domicílios abastecidos pela rede, frente a cerca de 491 mil (8,84%) com poços artesianos. No Sudeste, essa proporção, de ligação à rede de distribuição, chega a 93,9%. Entretanto, o IBGE não distingue o tipo de ligação — ou seja, não é possível saber quantas dessas conexões são legais, contratadas, medidas ou informalmente toleradas. Isso revela um paradoxo: a maior parte da população favelada acessa a rede pública, mas esse acesso não necessariamente se traduz em controle, medição ou arrecadação pelos prestadores de serviço.

Mesmo nas áreas em que há rede instalada, a ausência de hidrômetros individuais, a precariedade das conexões e o improviso das instalações tornam o consumo invisível — ainda que real. Esse consumo, ao não ser captado por sistemas de medição, passa a ser classificado como perda aparente nos balanços hídricos diretos, mesmo que decorra de uma demanda legítima e contínua. A informalidade, portanto, não apenas dificulta a regulação do acesso, mas fragiliza os próprios indicadores de eficiência e cobertura dos sistemas de abastecimento.

Do ponto de vista técnico, essa condição cria um limbo entre a informalidade e a regularidade, dificultando o enquadramento operacional dessas ligações e, principalmente, a contabilização do consumo real. Como consequência, o abastecimento se mantém em operação, mas sem parâmetros claros de aferição ou controle, levando à distorção dos diagnósticos operacionais. A informalidade não se limita, portanto, à esfera jurídica da posse do solo, mas compromete diretamente a capacidade institucional de mensurar, planejar e recuperar os investimentos nos sistemas.

A instalação de hidrômetros individuais em áreas irregulares é um dos maiores entraves à medição do consumo real em favelas. Isso decorre tanto da complexidade técnica — como a ausência de numeração oficial dos domicílios, acessos estreitos, insegurança pública e moradias sobrepostas — quanto de limitações legais, uma vez que muitos domicílios não possuem documentação mínima para estabelecer contratos formais com os prestadores. Ainda assim, em algumas favelas há esforços para implementar medição coletiva ou por agrupamentos familiares, embora com limitações operacionais e legais.

Entre o combate e a adaptação

Diante desse cenário, prestadores de serviço e governos têm oscilado entre duas abordagens: a repressiva, focada na fiscalização, corte de ligações irregulares e penalizações, e a adaptativa, que busca estratégias de integração parcial das favelas ao sistema formal. A primeira abordagem, ainda amplamente utilizada, costuma apresentar baixa efetividade e alto custo político, gerando tensão social e dificuldades práticas de manutenção. A segunda, mais recente, procura alternativas para inclusão, mesmo sem a plena regularização fundiária.

Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte implementaram experiências de hidrômetros coletivos, redes simplificadas de distribuição, sistemas pré-pagos e contratos em nome de associações comunitárias. Tais estratégias, embora imperfeitas, revelam caminhos possíveis para a formalização progressiva do abastecimento. A experiência mostra que o combate direto à informalidade, quando desacompanhado de alternativas viáveis, tende a fracassar — ou pior, agravar as desigualdades.

Reconhecer a complexidade da medição em áreas informais não significa abandonar os princípios técnicos do saneamento. Pelo contrário, é uma forma de requalificar o conceito de universalização, incluindo dimensões sociais, territoriais e jurídicas até então negligenciadas. Em última instância, é também um passo necessário para transformar os indicadores de perdas em instrumentos de planejamento — e não em reflexos da exclusão.


CAMINHO METODOLÓGICO


Decisões analíticas, escolha dos dados, fontes utilizadas e limitações


A construção deste estudo se fundamenta na integração de diferentes bases de dados públicas e oficiais. A principal referência para as informações populacionais e territoriais é o Censo Demográfico 2022, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com especial atenção às informações referentes à população residente em favelas. O IBGE também contribuí com dados do PIB per capita, com informações do ano de 2021.

Para os dados operacionais e econômicos dos sistemas de abastecimento de água, foi utilizado o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SINISA), em sua versão mais recente com base de dados de 2023. O SINISA substitui o antigo SNIS com nova estrutura de indicadores e interface modernizada, sendo a base de dados oficial utilizada para monitoramento da prestação dos serviços de saneamento básico no país.

Essa integração de dados demográficos, operacionais e espaciais permitiu compor uma base unificada, estruturada para análise estatística e visualização interativa em dashboards, respeitando os diferentes níveis de disponibilidade e completude das informações por município.

A escolha dos indicadores utilizados no estudo foi orientada tanto pela sua relevância conceitual quanto pela disponibilidade de dados consistentes. São eles:

  • População residente em favelas (%): indicador que expressa o grau de informalidade urbana em cada município, com base na proporção da população vivendo em áreas classificadas como favelas.

  • Perdas totais na distribuição (%): indicador técnico que expressa o volume de água produzido que não é contabilizado na forma de consumo final, englobando perdas físicas e aparentes.

  • Incidência da hidrometração (%): proporção de ligações com hidrômetro instalado. É um indicador-chave da capacidade de medição, regulação e cobrança pelo serviço prestado.

  • Cobertura do abastecimento de água (%): representa a proporção da população atendida em relação à população total, que inclui a população em favelas.

  • Consumo residencial médio per capita (L/hab.dia): média do consumo de água por habitante nas ligações residenciais, utilizado para entender padrões de consumo.

  • Tarifa média de água (R$/m³): valor médio cobrado pelo fornecimento de água tratada aos usuários, calculado a partir da receita operacional e volume faturado.

  • PIB per capita (R$/hab): indicador econômico geral do município, utilizado como proxy da capacidade de investimento local e da estrutura socioeconômica.

Cada um desses indicadores foi selecionado por sua potencial relação com o fenômeno da urbanização informal e da eficiência dos sistemas de abastecimento, permitindo análises comparativas entre diferentes contextos territoriais e operacionais.

Apesar da abrangência da base de dados construída, algumas limitações metodológicas foram identificadas e enfrentadas. A principal delas diz respeito à ausência e confiabilidade dos dados de perdas aparentes no SINISA, para o ano de 2023. Em muitos municípios, esse indicador apresentou valores incompatíveis com os totais declarados ou lacunas de preenchimento, inviabilizando sua utilização como variável de análise. Dado que as perdas aparentes seriam teoricamente as mais diretamente afetadas pela informalidade urbana (em razão dos furtos, fraudes e consumos não medidos), sua exclusão constitui uma limitação relevante, mas necessária para a consistência analítica do estudo. Como alternativa, foram utilizadas as perdas totais, que embora englobem perdas físicas e aparentes, possuem maior preenchimento e coerência entre os municípios.

A análise estatística se concentrou na aplicação do coeficiente de correlação de Spearman, por ser mais robusto frente à distribuição não normal dos dados e por considerar relações monotônicas, que não exigem linearidade entre as variáveis. A escolha do Spearman foi especialmente pertinente para lidar com os diferentes tipos de escalas dos indicadores e com os valores extremos presentes em algumas variáveis (como população ou consumo per capita).

A matriz de correlação foi construída para diferentes recortes de agrupamento dos municípios, de forma a explorar padrões específicos em contextos distintos. Os principais recortes utilizados foram:

  • Todos os municípios com população residente em favelas, somente as capitais estaduais, capitais + metrópoles (municípios com mais de 500 mil habitantes)

  • Municípios com alta, média e baixa favelização

  • Recortes regionais (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul)

Em cada matriz, foram incluídos apenas os municípios com dados válidos para o par de variáveis considerado. Os resultados foram organizados em heatmaps interpretáveis.

A utilização das correlações não tem por objetivo demonstrar causalidade, mas sim identificar padrões estatísticos relevantes entre indicadores sociais, econômicos e operacionais, apoiando hipóteses interpretativas e fundamentando discussões críticas sobre a governança da água e os limites da prestação de serviços em áreas urbanas informais.


VISUALIZAÇÃO DOS DADOS: DASHBOARD, HEATMAPS E MAPAS


Guiando a exploração interativa

Os principais resultados deste estudo podem ser explorados diretamente por meio de um painel interativo que reúne os indicadores mais relevantes dos municípios com presença de favelas no Brasil. O dashboard foi desenvolvido para permitir a navegação dinâmica entre diferentes recortes territoriais e níveis de favelização, com filtros aplicáveis por Região, Unidade Federativa (UF) e percentual da população residente em favelas. Com isso, é possível visualizar de forma segmentada os dados gerais de cobertura, perdas, medição e consumo, comparando diferentes contextos urbanos.

Além do painel numérico, mapas temáticos permitem observar a distribuição espacial das favelas e dos indicadores operacionais associados ao abastecimento de água. Estão disponíveis tanto mapas por município com gradação por faixas de valor quanto mapas de calor que destacam as regiões com maior concentração populacional. Essas representações permitem uma leitura imediata dos territórios mais impactados por ineficiências, vulnerabilidade social e exclusão dos serviços formais.

A navegação integrada entre filtros, gráficos e mapas torna os dados mais acessíveis e fortalece a capacidade analítica do leitor. Todos os elementos visuais são incorporados ao artigo para promover uma leitura interativa e orientar a interpretação dos padrões identificados ao longo do estudo.

O acesso ao dashboard consolidado para visualizar apenas os resultados está disponível nesse link:

ACESSO AO DASHBOARD EXCLUSIVO EM BREVE


RESULTADOS E DISCUSSÃO: ENTRE OS TERRITÓRIOS E OS DADOS


Panorama geral das favelas e das perdas de água


Painel de municípios com favelas e indicadores de saneamento



Os dados levantados neste estudo evidenciam, de forma inquestionável, que a presença de favelas no Brasil é não apenas numericamente expressiva, mas também profundamente assimétrica do ponto de vista territorial. Ao todo, 656 municípios registraram, segundo o Censo Demográfico de 2022, a existência de população residente em favelas — totalizando cerca de 16,4 milhões de habitantes, o equivalente a 8% da população nacional. Esse contingente populacional, embora concentrado em grandes centros urbanos, também se distribui por cidades médias e até pequenas, refletindo a complexidade da informalidade habitacional no país.

A análise espacial dos dados mostra que essa população está particularmente concentrada nas regiões Sudeste, Nordeste e Norte, com ênfase nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Amazonas, que juntos concentram aproximadamente 52% da população residente em favelas no Brasil. Essa distribuição revela não apenas um padrão histórico de urbanização excludente, mas também reforça a necessidade de regionalizar as estratégias de políticas públicas voltadas à universalização dos serviços essenciais.

Em paralelo, os indicadores de perdas totais de água — obtidos a partir do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SINISA) — mostram que a média nacional nos municípios com população favelada está próxima dos 40%, com registros acima de 60% em diversos casos críticos. Embora as perdas totais reflitam tanto falhas físicas quanto perdas comerciais, seu alto patamar reforça a hipótese de que há fragilidades sistêmicas relevantes.


Recortes regionais e populacionais


Mapas de calor (densidades populacionais)


A análise foi desdobrada em diferentes recortes para capturar as especificidades territoriais dos fenômenos. Dentre os grupos testados — como apenas capitais, apenas capitais e metrópoles, regiões específicas, níveis de favelização e o universo total de municípios com favelas — o conjunto formado por capitais e metrópoles, reunindo 47 cidades, foi o que apresentou o padrão mais consistente e interpretável de correlações entre os indicadores.

Esse grupo de municípios abriga, conjuntamente, uma população de aproximadamente 61,2 milhões de habitantes, dos quais 10,8 milhões vivem em favelas, representando um percentual médio de 17,6% de favelização dentre todo esse recorte populacional. Já os indicadores médios do grupo revelam que o atendimento médio corresponde a 91,3%, a hidrometração média se encontra em torno de 87,2%, o consumo per capita diário em 147,3 L/hab.dia, a tarifa média praticada gira em torno de 6,2 R$/m³, e o PIB per capita médio é de 45.232 R$/hab. O indicador de perdas totais na distribuição apresenta, nesse recorte, 38,1%.


Correlação como lente crítica

A análise estatística baseada no coeficiente de correlação de Spearman foi utilizada neste estudo com o intuito de identificar associações monotônicas entre variáveis selecionadas — como proporção de população residente em favelas, perdas totais, hidrometração, tarifa média e consumo médio per capita — em diferentes agrupamentos territoriais e populacionais. Em nenhum momento esta abordagem buscou estabelecer relações de causalidade, mas sim reconhecer padrões de coocorrência estatística que possam lançar luz sobre a complexa interação entre informalidade urbana e desempenho dos sistemas de abastecimento.

No conjunto agregado de todos os 656 municípios com população residente em favelas, os resultados apontaram para correlações em geral fracas e inconsistentes. A correlação entre a proporção de população em favelas e as perdas totais na distribuição, por exemplo, foi quase nula (ρ = +0,09). Este resultado evidencia que o uso de um recorte tão amplo — que inclui desde grandes metrópoles até pequenos municípios do interior — tende a diluir os efeitos de associação devido à heterogeneidade extrema entre os casos. A presença simultânea de realidades demográficas, econômicas, técnicas e políticas tão diversas gera ruído estatístico, dificultando a identificação de relações robustas. Ainda que útil como ponto de partida, a análise agregada apresenta limitações interpretativas e reforça a necessidade de recortes mais específicos.

Matrizes de correlação - Grupos populacionais e municipais

Entre os recortes territoriais avaliados, o grupo formado apenas pelas capitais dos estados apresentou correlações estatisticamente mais expressivas, apesar do baixo N (n=27). Nesse conjunto mais homogêneo em termos de estrutura institucional, capacidade de gestão e concentração urbana, observou-se uma correlação moderada entre população em favelas e perdas totais (ρ = +0,39), além de outros vínculos relevantes entre PIB per capita e perdas (ρ = -0,45). No entanto, o número reduzido de casos exige cautela quanto à extrapolação dos resultados, ainda que o perfil dos municípios favoreça uma comparação mais equitativa.

Diante disso, o recorte escolhido como referência principal da análise foi o agrupamento de capitais e metrópoles (n = 47). Este grupo representa 50% da população total do estudo e 65,9% da população da população brasileira residente em favelas, e permite equilibrar a robustez estatística com a coerência estrutural e populacional entre os municípios. A correlação entre população em favelas e perdas totais também foi moderada (ρ = +0,42), demonstrando que, dentro desse universo urbano, municípios com maior informalidade tendem a enfrentar mais dificuldades operacionais, técnicas e institucionais no controle das perdas de água. Esse vínculo estatístico deve ser lido como indício de condições compartilhadas de vulnerabilidade institucional e territorial, e não como uma imputação direta de causalidade.

Outros indicadores também revelaram correlações relevantes. O PIB per capita, por exemplo, apresentou correlação negativa com as perdas totais (ρ = –0,40), sugerindo que municípios mais ricos tendem a apresentar sistemas mais estruturados, com menores níveis de perdas. No entanto, a correlação entre PIB per capita e população residente em favelas foi relativamente baixa (ρ = –0,23), o que reforça a tese de que riqueza local não implica, necessariamente, em redução da informalidade urbana. Isso se confirma especialmente nas metrópoles do Sudeste, onde a concentração de renda convive com altos percentuais de favelização.

A hidrometração também apresentou uma correlação positiva com a cobertura formal de abastecimento (ρ = +0,60), indicando que onde há maior fornecimento, também há maior presença de medição do consumo. Ainda assim, o valor não foi tão elevado quanto se poderia supor, o que pode ser indício de que a expansão da rede não tem sido acompanhada por investimentos compatíveis na estruturação comercial, ou então de métricas de mensuração equivocadas na contabilização da população atendida.

Já a tarifa média de água não apresentou correlações relevantes com nenhum dos demais indicadores. Isso sugere que as políticas tarifárias praticadas nos municípios são pouco sensíveis à realidade técnica ou socioeconômica local, e que os preços cobrados pela água não acompanham, necessariamente, a eficiência dos sistemas nem a presença de informalidade ou necessidade de expansão. Essa desconexão pode ser explicada por fatores regulatórios, estratégias políticas ou modelos de subsídio adotados pelas operadoras e agências reguladoras.


Matrizes de correlação - Grupos de nível de favelização

Nos recortes baseados no nível de favelização, os resultados também apontam para comportamentos distintos:

  • No grupo de baixa favelização (0 a 5% da população em favelas), os coeficientes de correlação foram, em geral, muito fracos ou nulos, inclusive entre população em favelas e perdas totais (ρ = -0,01). Isso pode ser atribuído à elevada heterogeneidade dos municípios que se enquadram nesse grupo.

  • No grupo de média favelização (5 a 15%), as correlações se tornaram mais evidentes, sugerindo que existe um limiar a partir do qual o grau de informalidade começa a impactar e associar contextos mais similares aos municípios desse grupo, que refletem no desempenho técnico-operacional. A correlação entre favelas e perdas foi de ρ = +0,11, ainda baixa, mas mais coerente que no grupo de baixa favelização.

  • No grupo de alta favelização (mais de 15%), a correlação entre população em favelas e perdas totais se elevou para ρ = +0,29, indicando que quanto mais intensiva é a informalidade, maior tende a ser o grau de sobrecarga ou fragilidade no sistema. Ainda assim, a dispersão dos casos neste grupo exige cuidado na leitura, dado que as realidades podem variar de grandes metrópoles a pequenas cidades.


Matrizes de correlação - Grupos regionais


Já nos recortes regionais, os resultados se mostraram ainda mais heterogêneos:

  • A região Centro-Oeste apresentou, de maneira geral, as maiores correlações dentre o recorte regional em diversos pares de variáveis, porém para população em favelas e perdas foi de ρ = +0,08. Ressalva-se que o número de municípios avaliados é o menor (38), o que limita a generalização.

  • A região Sudeste, apesar de concentrar o maior número de municípios com favelas e a maior população favelada do país, teve os coeficientes mais baixos de correlação entre todos os agrupamentos, incluindo uma correlação negativa e baixa entre população em favelas e perdas (ρ = –0,18). Esse resultado é intrigante e pode refletir a grande diversidade interna da região, tanto em termos de infraestrutura quanto de políticas públicas e estrutura urbana.

  • As regiões Norte, Nordeste e Sul apresentaram resultados intermediários, com correlações fracas ou próximas de zero no que diz respeito à relação entre informalidade e perdas. Isso reforça a ideia de que a dimensão regional, sozinha, não é suficiente para explicar os padrões observados, e que a urbanização informal deve ser analisada com recortes mais ajustados às realidades locais.


Em síntese, os resultados da análise de correlação revelam vínculos relevantes — ainda que não universais — entre a presença de favelas e a eficiência dos sistemas de abastecimento de água, bem como o estado geral da prestação do serviço. A análise evidencia que, embora exista um padrão reconhecível de sobreposição entre informalidade urbana e fragilidades operacionais, esse padrão não se manifesta de maneira uniforme em todo o território nacional.

As correlações coerentes, que reforçam as teses iniciais, sugerem a existência de condições estruturais compartilhadas entre os municípios, mas que depende do grupo considerando para apresentarem resultados minimamente coerentes. Por outro lado, os resultados estatisticamente frágeis ou contraditórios também são reveladores: podem refletir inconsistências nos dados informados pelos próprios prestadores, heterogeneidades locais abruptas que distorcem o padrão estatístico, ou ainda a desconexão entre expansão da cobertura e melhoria da qualidade e gestão do serviço. Essas variações não apenas desafiam a leitura direta dos dados, como expõem lacunas importantes nas políticas públicas de saneamento.

Nesse sentido, os resultados funcionam como sinais de alerta sobre a qualidade da governança setorial, da confiabilidade das bases de informação e da eficácia dos modelos regulatórios atualmente adotados. A informalidade urbana, longe de ser um fator isolado, interage com deficiências institucionais, limites de planejamento e práticas operacionais desiguais.


Relações de inconsistência na consideração das populações


Com o fim de avaliar a qualidade dos dados, foram avaliadas, dentro do universo dos municípios do estudo, que contam com alguma população categorizada como residente em favelas, as informações dos indicadores de Atendimento total do serviço (%), Índice de hidrometração (%) e População Residente em Favelas (%). O cruzamento dessas informações pode revelar algumas questões que são desconsideradas, ou forçadas, e que podem ocorrer a muito tempo, levando a uma avaliação alheia à realidade.


Gráficos de paridade dos indicadores de atendimento e população


A análise das relações entre os percentuais de hidrometração, atendimento formal e presença de população em favelas revela incoerências que merecem ser problematizadas. Há municípios com significativa proporção da população residindo em favelas — frequentemente superior a 20% — que relatam atendimento de água próximo a 100%, mesmo apresentando níveis muito baixos de hidrometração. O que isso pode sugerir? De que toda essa população em favelas, de por exemplo de 50 a 500 mil habitantes, estejam todos sendo servidos com o serviço de abastecimento, de que de fato há uma universalização do abastecimento. Mas que ao ter 100% – ou próximo disso – e apresentar hidrometração consideravelmente abaixo, em torno de 60 a 80%, não haja medição mas que a água chega de fato até quase todas as moradias dessa população.

Do outro lado, municípios com 100% de hidrometração, mas com variação de 50 a 80% do atendimento do serviço, indicam que todos os domicílios regulares recebam medição e o sistema não é universalizado pela parcela da população residente em favelas, em que o abastecimento não abrange. Seria esse o caso? Isso levanta uma questão relevante: o indicador de hidrometração está sendo calculado com base em que universo? Seria apenas para os domicílios formalmente contratados?

Essas lacunas revelam uma fragilidade estrutural nos instrumentos de mensuração do sistema, em que parte da população pode estar invisível tanto na prestação regular do serviço quanto no controle operacional.

A origem dessas inconsistências pode estar diretamente relacionada à lógica de autodeclaração dos dados operacionais por parte dos prestadores. Em sistemas de saneamento que atuam em territórios com forte presença de informalidade urbana, a tendência é priorizar a formalização dos domicílios regulares e, simultaneamente, deixar em segundo plano as áreas de favelas — que continuam sendo abastecidas de maneira improvisada, tolerada ou até clandestina, e por fim acabam por ser contemplados no universo da população atendida pelo serviço de abastecimento. A consequência disso é a formulação de indicadores estatísticos que, embora tecnicamente corretos do ponto de vista dos registros da concessionária, não representam a realidade do abastecimento urbano. Esses números, muitas vezes, escondem a complexidade dos territórios e distorcem os diagnósticos, contribuindo para uma falsa sensação de eficiência e universalização. Nesse sentido, as métricas, ainda que oficiais, podem ser duvidosas e revelar mais sobre as lacunas de governança e regulação do que sobre o desempenho real dos sistemas.


Casos de destaques das capitais estaduais brasileiras


Entre as capitais brasileiras, alguns casos se destacam não apenas pelos números absolutos, mas pela complexidade que expressam em relação ao abastecimento de água em territórios marcados pela informalidade urbana. Em Belém e Manaus — que lideram o ranking com as maiores proporções de população vivendo em favelas, com 57,17% e 55,81%, respectivamente — os indicadores operacionais revelam realidades contrastantes. Enquanto Manaus apresenta um elevado índice de hidrometração (92,48%) e quase universalização no atendimento (97,98%), suas perdas totais permanecem elevadas, chegando a 47,49%. Já Belém, com cobertura de atendimento também expressiva (94,62%), possui hidrometração consideravelmente mais baixa (47,89%) e perdas ainda mais críticas (61,91%). Ambos os casos sugerem contextos operacionais contrastantes, mesmo elevada favelização. Como é possível ambos estarem próximos da universalização? Toda a população em favelas é atendida pelo serviço? E no caso de Belém, a população é atendida mas grande parcela não possui qualquer medição individual?

São Paulo e Rio de Janeiro, as capitais mais populosas do país, também expressam dilemas relevantes. Com 11,45 milhões de habitantes, São Paulo apresenta 15,09% de sua população residindo em favelas. A cidade declara universalização do atendimento (99,63%) e cobertura total de hidrometração (100%), e um relativo baixo índice de perdas (25,39%), inclusive bem abaixo da média nacional. É possível, de fato, que quase 1,73 milhão de habitantes esteja sendo atendida pelo serviço de abastecimento continuamente? É possível que todos os domicílios em favelas estejam, de fato, medindo o quanto consomem? Em contrapartida, o Rio de Janeiro, com 6,21 milhões de habitantes e 21,73% da população em favelas (total de 1,35 milhão), registra um patamar mais baixo de atendimento (89,17%) e hidrometração (67,27%), com perdas (50,49%) significativamente maiores em comparação à São Paulo. Ainda que ambos compartilhem contextos metropolitanos densos e desiguais, o que pode diferenciar o desempenho entre os dois, nos indicadores avaliados?

No extremo das perdas, Maceió se destaca negativamente por apresentar o maior índice de perdas totais entre todas as capitais brasileiras, alcançando alarmantes 71,73%. Com 15,83% da população residindo em favelas, a capital alagoana informa um índice de atendimento de 87,62% e uma cobertura de hidrometração relativamente elevada (83,25%). A coexistência entre considerável hidrometração e elevadas perdas sugere que o problema central pode estar menos relacionado ao consumo não medido e mais à integridade física da rede ou à fragilidade na operação e manutenção do sistema. Ainda assim, o número expressivo de domicílios em favelas exige uma leitura crítica sobre como essas populações estão sendo efetivamente inseridas — ou não — na lógica do abastecimento regularizado. Estaria faltando apenas a população em favelas ser atendida, pela lógica dos indicadores, enquanto a população residente em moradias regularizadas sendo totalmente atendida, e quase todas essas moradias recebendo medição de consumo?

Esses exemplos ilustram que os dados oficiais, mesmo quando bem estruturados, não oferecem respostas simples. Eles devem ser lidos com atenção às contradições internas e aos contextos territoriais que os moldam. As capitais analisadas condensam, em seus dados, dilemas estruturais sobre equidade, informalidade e governança, demonstrando que a eficiência dos sistemas de abastecimento não pode ser aferida exclusivamente por números agregados. Cada indicador carrega em si a memória das escolhas institucionais feitas — ou postergadas — no enfrentamento da urbanização precária no Brasil.


Limites da análise e hipóteses interpretativas


Embora as correlações apresentadas sejam significativas em termos estatísticos e conceitualmente relevantes, é fundamental reconhecer suas limitações analíticas. Os indicadores utilizados possuem origens distintas — populacionais (IBGE) e operacionais (SINISA) —, com graus variados de confiabilidade e completude. A ausência de dados consistentes sobre perdas aparentes inviabilizou sua inclusão de forma robusta, o que compromete uma leitura mais precisa do impacto dos furtos, fraudes e submedições.

Além disso, a natureza heterogênea das favelas brasileiras impõe desafios à padronização das análises. Há favelas parcialmente regularizadas, outras completamente à margem do Estado, e muitas em zonas cinzentas, com arranjos híbridos. O mesmo se aplica às empresas prestadoras de serviço, cuja capacidade técnica, estrutura de governança e estratégias de atendimento variam significativamente de um território a outro.

O uso da correlação, neste contexto, permite detectar tendências estruturais, mas não substitui a necessidade de estudos locais mais aprofundados. Alguns municípios com baixa favelização apresentam perdas elevadas devido a fatores como redes antigas, pressão elevada e gestão ineficiente. Da mesma forma, há cidades com alta proporção de favelas que apresentam desempenho técnico razoável, fruto de políticas de integração, arranjos comunitários e soluções adaptadas.

Por fim, os achados deste estudo reforçam que a urbanização informal não pode ser tratada como uma anomalia periférica ao sistema de abastecimento. Ela está no centro dos desafios da universalização e da sustentabilidade do saneamento no Brasil. O cruzamento entre pobreza territorial, desorganização fundiária e fragilidade institucional impõe a necessidade de uma abordagem multidimensional — que considere os dados técnicos, mas vá além deles, incorporando também aspectos sociais, jurídicos e históricos na construção de soluções viáveis.


CONCLUSÃO


A análise desenvolvida neste artigo revelou que a relação entre a urbanização informal e a eficiência dos sistemas de abastecimento de água no Brasil é marcada por uma combinação de padrões coerentes, contradições estatísticas e lacunas institucionais. Em alguns agrupamentos territoriais, como o das capitais e metrópoles, foram identificadas correlações moderadas entre a proporção de população residente em favelas e os níveis de perdas totais — sugerindo uma sobreposição entre vulnerabilidade territorial, informalidade urbana e fragilidade na gestão dos sistemas de abastecimento. Outros indicadores, como o PIB per capita e a hidrometração, também demonstraram associação com a performance dos serviços, especialmente no que tange à estrutura institucional e capacidade operacional dos prestadores.

No entanto, os resultados não foram uniformes. Nos recortes regionais ou no conjunto total dos municípios, as correlações foram mais fracas ou mesmo inexistentes, evidenciando a heterogeneidade extrema das realidades urbanas brasileiras. A ausência de padrões estatísticos consistentes nesses casos não invalida a hipótese central — de que a informalidade impacta os sistemas —, mas reforça a complexidade da análise. As variações podem decorrer tanto de limitações nos dados (como inconsistências na autodeclaração dos prestadores e subnotificação das favelas) quanto de fatores locais não captados pelos indicadores disponíveis (como estratégias comunitárias, políticas locais ou fragilidades estruturais).

Essa constatação amplia o escopo da discussão: os indicadores oficiais — mesmo quando coerentes entre si — não necessariamente refletem a realidade plena dos territórios. A leitura crítica das correlações aqui apresentadas permite colocar em questão a confiabilidade de certos dados operacionais, a fragilidade dos critérios de mensuração da universalização e a desarticulação entre regulação, planejamento e infraestrutura. Os dados, nesse caso, mais revelam os limites da governança do que os méritos da cobertura formal.

Diante desse quadro, é urgente fortalecer o aparato institucional que define e monitora os indicadores do saneamento. Isso envolve qualificar a base de dados nacional, padronizar metodologias de medição, incorporar a informalidade urbana nos diagnósticos oficiais e adaptar os modelos regulatórios para reconhecer as singularidades dos territórios vulneráveis. Não se trata apenas de medir melhor, mas de ver melhor — ou seja, superar a invisibilidade dos territórios populares nas políticas públicas de saneamento.

Ao iluminar essas relações, este estudo pretende contribuir para um debate mais estruturado e crítico sobre os caminhos para a universalização efetiva do acesso à água. A invisibilidade estatística precisa dar lugar à visibilidade política e técnica. Só assim será possível desenhar políticas que reconheçam a favela como parte constitutiva da cidade — e não como exceção a ser ignorada nos planejamentos.


REFERÊNCIAS E METADADOS




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